Praticamente coincidindo com o início do 20º Congresso do PC chinês, a confirmação de Xi Jinping como o líder mais poderoso depois de Mao Zedong, o presidente Joe Biden proibiu a exportação de componentes semicondutores para a China e, paralelamente, ordenou que os cidadãos norte-americanos China na produção ou pesquisa de semicondutores para deixar de fazê-lo. É a confirmação do pano de fundo de seu último livro, A Mulher Dragão Vermelhoisto é, que a China está buscando a supremacia global e os Estados Unidos estão tentando chegar lá a tempo de evitá-la?
Os Estados Unidos e a China estão lutando pela supremacia, isso é evidente. A questão de qual é a maior potência do planeta poderia ser indiferente para nós se o regime chinês tivesse se tornado o maior estado totalitário da história, ainda mais totalitário que a Alemanha comunista com a Stasi, dada a forma como o regime chinês usa a inteligência artificial controlar toda a população. Essa pergunta já estava presente no meu romance Imortal. Agora há sinais, como mostra meu novo romance A Mulher Dragão Vermelho, que tal controle também começa a ser exercido sobre populações fora da China. Queremos que tal regime seja dominante no mundo?
A certa altura do livro, e não esquecendo que estamos a falar de uma obra de ficção, diz-se “temos que fazer guerra ao ba sem que o ba sequer perceba que há uma guerra”. A referência é histórica, ao período dos Reinos Combatentes, mas o ba hoje será os Estados Unidos e aquele que fizer guerra a ele para ser o novo ba será a República Popular da China. Afinal, os americanos perceberam que há uma guerra? A chamada estratégia de engano chinesa não funciona mais?
Com a crise desencadeada pela queda do Lehman Brothers, seguida da crise europeia, do Brexit e da ascensão de Donald Trump, o regime chinês acreditava que o Ocidente tinha entrado irreversivelmente em decadência. Não podemos esquecer que o regime chinês é comunista e Marx previu no século 19 o colapso “iminente” do capitalismo. Como comunista, o regime chinês acreditou em 2008 que o chamado colapso “final” havia chegado. Foi o momento em que o regime chinês decidiu que poderia abrir o jogo porque sentiu que sua supremacia se tornara irreversível. Essa crença dominou a política chinesa desde então, embora tenha sido abalada pela guerra na Ucrânia e pela súbita vitalidade demonstrada pelo Ocidente. Mas, sim, estamos em guerra sem perceber que estamos em guerra. A guerra em curso não é apenas na Ucrânia e o adversário não é apenas a Rússia. A Ucrânia e a Rússia são apenas peões em um conflito maior entre o Ocidente e a China.
É evidente pela leitura de seu romance que ele mergulhou na história chinesa, antiga e recente, e atribui ao PC chinês uma atitude revanchista contra o Ocidente. Mas o chamado século da humilhação, mais ou menos desde a Guerra do Ópio até a proclamação da República Popular em 1949, ainda é um fato histórico, basta pensar no motivo que levou à guerra em que os britânicos conquistaram Hong Kong?
Dizer que o Ocidente tem uma mentalidade imperialista há séculos é auto-evidente. Potências ocidentais, incluindo Portugal, vieram colonizar partes do território chinês. Mas não foi o Ocidente que inventou os impérios, deve-se notar. A China desenvolveu uma mentalidade imperialista antes do Ocidente. De fato, uma das razões pelas quais a China nunca terá uma democracia é que a China não é um país, é um império no qual uma etnia colonizou as outras. Se o regime der o voto ao povo, muitas etnias votarão pela independência e o império chinês se fragmentará. Portanto, é verdade que o Ocidente teve uma atitude imperial em relação à China, mas também é verdade que, dentro da própria China, as atitudes imperiais em relação aos grupos minoritários permanecem. No que diz respeito aos impérios, não há inocentes nesta história.
Através da personagem Charlie Chang e também na Nota Final, em que recorda os anos em que viveu em Macau, insiste em distinguir o PC chinês do povo chinês. Você já foi pressionado a ser tão duro com os governantes chineses, não apenas neste livro, mas emO Imortal?
Aconteceu-me, num importante país europeu, que um texto meu foi rejeitado por tratar da questão do Tibete. O editor em questão me explicou que os acionistas eram chineses e, portanto, esse assunto não poderia ser abordado. Agora, é importante saber distinguir a China, um país antigo com uma cultura e filosofia fascinantes e um povo extraordinário, do Partido Comunista Chinês, que segundo os cálculos dos historiadores causou a morte de entre 35 e 65 milhões de pessoas, que faz do comunismo chinês o maior assassino da história. Pois é esse regime que agora busca a supremacia no planeta.
Grande parte do romance é a descrição do personagem Madina da situação em Xinjiang, a província tradicionalmente de maioria muçulmana do oeste da China. O que ela descreve é um sistema de concentração, sobre o qual muito se escreveu e há poucas semanas a embaixada americana em Lisboa promoveu a exibição de um documentário sobre a região e trouxe ativistas uigures para denunciar o que está acontecendo lá. Por que as técnicas chinesas de uso da tecnologia para controlar a sociedade parecem ser levadas ao extremo em Xinjiang?
Porque faz parte da lógica do regime comunista controlar a sociedade e silenciar a dissidência. Vimos isso acontecer em inúmeros regimes semelhantes, da União Soviética à Alemanha, Albânia, Coréia do Norte etc. A diferença é que o regime chinês agora tem acesso a meios eletrônicos que outros regimes não tinham. Por exemplo, eles desenvolveram algoritmos de identificação racial e algoritmos de identificação de ideias políticas e os estão usando para enviar milhões de pessoas para campos de concentração. As pessoas entendem o que isso significa?
Em sua Nota Final, onde descreve leituras e explica um pouco onde a realidade e a ficção se confundem, afirma que denunciar “as violações dos direitos humanos pelo PC chinês não é criticar a China. É defendê-la. Os chineses não são carrascos. vítimas”. . Mas em sua defesa, os governantes chineses costumam falar de 850 milhões de pessoas retiradas da pobreza. Que valor você dá a esse argumento?
Esse argumento lembra aquele que diz que Hitler pode ter perseguido os judeus e a oposição, mas não foi tão ruim assim porque construiu estradas e deu empregos aos alemães. É verdade que, com a abertura ao capitalismo, os comunistas chineses criaram uma enorme riqueza e tiraram da pobreza fatias importantes de sua população. Isso é inquestionável. E depois? Como isso justifica ter mais de uma centena de campos de concentração, colocar milhões de pessoas neles, perseguir pessoas por motivos étnicos ou ideias políticas, praticar tortura, reconstituir a escravidão, realizar esterilizações forçadas de grupos étnicos que se enquadram na definição de genocídio da ONU e que montar um estado policial que invade sem limites a esfera privada dos cidadãos? Uma coisa lava a outra?
Os algoritmos sobre os quais ele nos alerta no livro também são, como ele escreve, explorados pelos Estados Unidos para fins de poder…
Algoritmos existem e são explorados por todos, inclusive no Ocidente. Veja o caso de Donald Trump e Cambridge Analytica. Mas não devemos fingir que é isso que o regime chinês está fazendo, porque não é. Nas democracias liberais existem mecanismos para corrigir abusos. Trump usou algoritmos, é verdade, mas graças à liberdade de expressão esse uso foi amplamente denunciado e foi possível desenvolver mecanismos corretivos. Sociedades abertas, como as democracias liberais, permitem a denúncia e possibilitam a correção de abusos. Nem tudo está resolvido, até porque a democracia liberal não é uma panaceia e tem muitos problemas, como sabemos e constantemente criticamos e discutimos abertamente, mas não se compara a regimes como o chinês, onde há campos de concentração, estado policial , censura, oposição à proibição, perseguição étnica, escravidão, etc. Não vale a pena fingir que é a mesma coisa porque não é.
Há quem diga que depois de décadas de complacência com a China, desde a histórica visita de Richard Nixon a Pequim, os Estados Unidos perceberam com Barack Obama, muito alto com Donald Trump e agora com Joe Biden, que a janela de oportunidade já é curta. tentar impedir a ultrapassagem da China como principal potência mundial?
Em suma, sim, foi o que aconteceu. De fato, Ronald Reagan já havia manifestado algumas preocupações em ajudar esses regimes, condicionando a ajuda econômica e tecnológica a reformas no sentido de abertura à democracia liberal, mas a ganância acabou fazendo esquecer as advertências de Reagan. Bill Clinton mais tarde percebeu que a evolução chinesa não estava na direção da democracia e tentou agir, mas os chamados “amigos da China”, incluindo muitas empresas americanas com interesses na China, conseguiram impedir as medidas que Clinton planejava alegando que a China era pacífica e só queria desenvolvimento, a democracia apareceria mais tarde. Este episódio é agora conhecido em Pequim como “o golpe Clinton”. O problema é que, com a crise de 2008, o regime chinês acreditou que o Ocidente havia entrado no colapso final e finalmente abriu seu jogo. Com o fim da duplicidade, tudo finalmente se concretizou.
Este livro é publicado em um momento em que a Rússia, por causa da invasão da Ucrânia, aparece aos olhos da opinião pública ocidental como a grande ameaça, um retorno inesperado à Guerra Fria. Esse confronto entre o Ocidente e a Rússia, mesmo que indireto, serve aos Estados Unidos para mostrar à China seu poder ou, ao contrário, distrai os americanos do que consideram sua maior ameaça? No livro até diz que todos os jogos de guerra simulados americanos resultam em derrota se o rival for a China.
A guerra na Ucrânia é uma derrota estratégica para o regime chinês – e em Pequim eles sabem disso. Mostrou que, como em 1939, as democracias liberais são muito mais poderosas do que aparentam, e que enquanto a democracia encoraja a dissensão, esta é uma fraqueza que em momentos de crise se torna força. Ditaduras vivem de mentiras e em algum momento acreditam em suas próprias mentiras. A Rússia mentiu quando disse que era muito forte e disse tanto que acreditou em sua mentira, agora enfrentando um duro despertar para a realidade. O Ocidente, sempre fraco e dividido, uniu-se e inesperadamente tornou-se muito forte. Isso é muito surpreendente para ditaduras como a russa e a chinesa. O problema da China é que ela só descobriu a força das democracias liberais depois de abrir seu jogo, então é tarde demais para retornar com sucesso ao jogo da dissimulação. O que Hitler só percebeu sobre as democracias liberais em 1939, Putin e Xi Jinping estão percebendo em 2022. Aliás, vale lembrar que em 1939, a União Soviética, envolvida no pacto nazista-comunista, estava do lado nazista e materialmente ajudou os nazistas. Era então, como agora, um conflito entre democracias liberais e ditaduras tirânicas.
Depois de ler isso A Mulher Dragão Vermelho Não posso deixar de identificar no autor alguém fascinado pela história da expansão portuguesa, mesmo que seja através de detalhes como os nomes Fonseka e Da Silva quando a ação do livro se passa no Sri Lanka ou a referência a Nagasáqui quando o principal os personagens estão no Japão. E entao? E será Tomás Noronha ser historiador a grande prova disso?
Não é um fascínio pela expansão portuguesa. É espanto. Como é possível que um país minúsculo como o nosso esteja tão presente nas mais variadas partes do planeta? Todos os dias eu me surpreendo.
leonidio.ferreira@dn.pt
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