Difícil de diagnosticar, sem cura e com alta morbidade, a doença de Crohn ainda contém diversos mistérios para a comunidade médica e científica. Nos últimos anos, alguns passos importantes foram dados para reduzir o impacto dessas doenças inflamatórias intestinais na vida dos pacientes, mas ainda há perguntas sem resposta sobre uma condição que afeta principalmente adultos jovens no auge da vida profissional, entre o idades de 15 e 15 e 30 anos. Como, por exemplo, identificar o “gatilho” que faz com que um intestino saudável comece a manifestar um estado inflamatório.
Esta descoberta, que viria a revolucionar a forma de prever e prevenir a doença, é a principal missão proposta pela investigadora Salomé Pinho, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde i3S, no Porto, para os próximos seis anos, num projeto financiado com sete milhões de euros pelo Programa Horizonte Europa da Comissão Europeia, que inclui a realização de um ensaio clínico.
Estima-se que existam atualmente cerca de 25.000 pessoas com doença inflamatória intestinal em Portugal, num universo de 10 milhões em todo o mundo, e, embora se desconheça uma causa específica para esta patologia, assume-se a importância de um cocktail de fatores. ambiental, genética, do estilo de vida ocidental à alimentação. O que a comunidade científica tem como evidência cada vez mais sólida, e que servirá de base ao projeto liderado por Salomé Pinho, é que “existe uma fase chamada pré-clínica, ou assintomática, da doença que pode durar cerca de dez anos”, explica o investigador ao DN. Uma fase sem sintomas que podem atrasar o diagnóstico e durante a qual já se observam “alterações imunológicas importantes na mucosa intestinal”, diz.
Agora, o trabalho proposto por este projeto europeu GlycanTrigger, coordenado pelo líder do grupo de investigação i3S “Imunologia, Cancro & Glicomedicina”, é perceber o que acontece na mucosa intestinal durante este período, o que provoca a inflamação do intestino e como pode ser prevenido. “O carácter inovador deste projecto é captar este “gatilho”, o princípio causal desta transição da saúde (de uma mucosa intestinal normal) para uma inflamação crónica do intestino”, sublinha o investigador, que tem acumulado distinções internacionais nesta área, como os atribuídos pela Organização Internacional para o Estudo de Doenças Inflamatórias Intestinais e pela Sociedade Americana de Glicobiologia.
O projeto atual é construído sobre algumas evidências geradas em anos de investigação pelo grupo liderado por Salomé Pinho. Como as “alterações detectadas no sangue dos indivíduos anos antes do aparecimento dos sintomas da doença, com a presença de anticorpos associados à doença de Crohn e até a possível gravidade da doença”, explica o pesquisador do i3S, que estudou amostras de sangue de militares Americanos que vão até seis anos antes de alguns deles manifestarem a doença.
O alvo principal deste estudo, em busca de tal mecanismo que desperte a doença, será o chamado glicocálice – “uma camada de glicanos (açúcares ou carboidratos) que cobre toda a superfície da mucosa intestinal e se assemelha a uma escova” , explica o cientista.
“Queremos estudar o impacto das alterações neste glicocálice na desregulação da relação simbiótica entre o hospedeiro e o microbioma intestinal e, consequentemente, no início do processo inflamatório. A certa altura, essa relação fica comprometida. E o gatilho que leva a este enfraquecimento pode estar no glicocálice”.
Usando outra imagem, se pensarmos no glicocálice que reveste a mucosa intestinal como uma floresta “visto de cima, essa camada em estado saudável seria como um grande pedaço de floresta verde, em que os galhos das árvores seriam os glicanos e os troncos as proteínas”, diz Salomé Pinho.
“Quando passamos de uma floresta exuberante e frondosa para uma floresta nua, ela se torna mais vulnerável à ação de microrganismos patogênicos. Há um efeito dominó: alterações no glicocálice causam disbiose, um desequilíbrio entre microrganismos sadios e patogênicos, e isso vai ativar a resposta do sistema imunológico e introduzir o processo inflamatório que desencadeia a doença”.
Essa área de pesquisa, a glicobiologia (os glicanos) e seu impacto na função e na doença das células, foi recentemente distinguida pelo Prêmio Nobel de Química 2022, concedido a Carolyn Bertozzi.
O pesquisador pretende estudar como essas alterações que desencadeiam a doença podem ser detectadas no sangue e, assim, identificar um novo biomarcador capaz de prever o início da inflamação intestinal anos antes do diagnóstico da doença de Crohn. Numa patologia sem cura à vista, assume uma importância acrescida “poder ter novas ferramentas preditivas da doença e novas estratégias de intervenção precoce para evitar aquele ‘clique’ que desencadeia a inflamação intestinal”, diz.
Uma das mais-valias do projeto é a execução prevista de um ensaio clínico, em parceria com o Grupo Luz Saúde, que poderá envolver “pacientes de vários hospitais”. Com parceiros na Alemanha, França, Reino Unido, EUA, Bélgica e Holanda, o projeto Glycan Trigger, que conta ainda com a colaboração do serviço de gastroenterologia do Centro Hospitalar Universitário do Porto, contará ainda com a “importante participação de uma associação europeia de pacientes com Doença Inflamatória Intestinal, o que garantirá o envolvimento da sociedade civil e o impacto deste projeto na melhoria da qualidade de vida dos pacientes com DC”, destaca Salomé Pinho.
rui.frias@dn.pt
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