*Por Rafael Dantas
“Você precisa fazer um transplante”. Essa frase assusta muitos pacientes. Ao mesmo tempo, abre caminho para uma nova vida, que só é possível graças aos avanços tecnológicos e das ciências médicas e ao robusto programa do Sistema Único de Saúde. Houve um cenário crescente de cirurgias e redução da fila de transplantes até 2019, quando chegou a pandemia, o que reduziu bastante o número de transplantes. Meses após o pico da Covid-19, Brasil e Pernambuco vivem um período de retomada gradual das doações. No entanto, ainda há 2.644 pacientes aguardando sua vez na fila somente no estado. Uma luta contra o relógio travada diariamente. Segundo dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos), a mortalidade de pacientes em lista de espera de transplante no Brasil passou de 2.500 óbitos em 2019 para 4.200 óbitos em 2021. A associação informa que pelo menos nove pessoas morreram por dia aguardando transplante em primeiro trimestre de 2022.
“A pandemia teve um impacto monstruoso. Avançamos muito no volume de transplantes por ano. Percebemos até uma redução da negação familiar, aumentando a quantidade de doações. Mas a pandemia foi um tsunami. Regredimos em números para quase sete anos de trabalho. Desde 2020, estamos em uma recuperação gradual, mas ainda não voltamos ao patamar pré-pandemia”, disse Noemy Gomes, coordenadora do CT-PE (Centro de Transplantes de Pernambuco).

Ela conta que um dos maiores impactos foi na fila de transplante de córnea, que desde 2015 era considerada zero (quando o paciente espera menos de 30 dias pelo procedimento). Após a chegada da Covid-19 ao Brasil, o tempo de espera chegou a mais de um ano. “Hoje temos uma fila de quase mil pessoas para transplante de córnea. Conseguimos fazer metade do volume de transplantes que fazíamos antes”, diz Noemy.
A superintendente geral do Imip (Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira), Tereza Campos, diz que o serviço de transplantes da instituição sofreu com a situação nacional de falta de doadores e, consequentemente, com a queda de cirurgias durante a pandemia. . O hospital é o maior centro de transplantes do Norte e Nordeste.

“A principal causa da queda na taxa de efetividade da doação foi o aumento de 60% na taxa de contraindicação da doação, que passou de 15% em 2019 para 24% em 2021. Esse aumento se deu por conta das medidas tomadas no início da pandemia para evitar a transmissão da Covid-19 pelo transplante, pois o risco de transmissão era desconhecido. Diante desse contexto, o Imip adota todas as medidas necessárias para garantir a segurança do paciente, recuperar o desempenho de 2019 e continuar salvando vidas. No momento, estamos desenvolvendo campanhas em nossas redes sociais e na instituição para conscientizar a população sobre a importância da doação de órgãos.”
O técnico de informática Ramon Carlos, 29 anos, alguns anos antes da pandemia fez um transplante de córnea nos dois olhos. O problema de visão foi percebido na adolescência e trouxe prejuízos no desempenho escolar. O diagnóstico de ceratocone o levou inicialmente ao uso de lente de contato e posterior necessidade de transplante, que foi realizado no Imip.
“Usei lentes de contato até chegar a minha vez na fila. Estava tenso, obviamente, com medo de que o organismo não aceitasse a córnea. Mas a cirurgia foi um sucesso. Passei alguns dias com um tapa-olho e depois comecei a usar óculos simples que já corrigiam minha visão. Três anos e meio depois, me recomendaram fazer o transplante do outro olho também. Hoje eu vejo muito bem. As dificuldades de estudar, praticar esportes, que eu não poderia fazer sem as lentes, acabaram”, diz Ramon Carlos. Anos após o transplante, ele só precisa continuar usando colírio e fazer acompanhamento médico anual.

Enquanto a esperança de Ramon era ter uma melhor qualidade de vida, pacientes de outros órgãos correm contra o tempo para se manterem vivos enquanto aguardam a cirurgia. Além da córnea, Pernambuco realiza transplantes de coração, fígado, rim, rim com pâncreas e medula. Excepcionalmente, também realizou transplantes ósseos no Hospital Otávio de Freitas, que está em processo de credenciamento para realizar o procedimento. O aumento do tempo de espera para cirurgia em alguns desses órgãos está diretamente relacionado à taxa de mortalidade, segundo Noemy Gomes.
DESAFIOS APÓS O AUMENTO DA PANDEMIA
Com mais de 10 anos de experiência no setor, o médico Cesar Lyra, coordenador de Transplantes de Fígado do Real Hospital Português, considera que a conscientização da família é a grande dificuldade para aumentar as doações. “O Sistema Nacional de Transplantes está muito bem estruturado do ponto de vista organizacional. As filas por gravidade e compatibilidade funcionam muito bem e quase 85% de todas as cirurgias são realizadas com recursos do SUS, mesmo em hospitais privados. O maior desafio hoje é aumentar a oferta de órgãos. Principalmente aqueles que não possuem tratamento substitutivo, como fígado e coração. As pessoas que querem ser doadoras de órgãos devem conscientizar suas famílias. Sempre diga que você é um doador de órgãos. Isso é importante para que a família tome uma decisão afirmativa no momento da perda de um ente querido”.

O chefe do Programa de Transplante de Medula Óssea do Real Hospital Português, Rodolfo Calixto, diz que nesta modalidade o impacto da pandemia foi mais acentuado nos primeiros três meses de circulação do vírus. Após esse período, as cirurgias retornaram gradativamente e já estão normais. “Atendemos pacientes que não podiam esperar a pandemia passar para receber o transplante.”
Tereza Campos destaca entre os grandes desafios: “a dificuldade das famílias em autorizar a doação; a falta de conhecimento por parte da sociedade sobre o assunto; o curto intervalo de tempo entre a retirada do órgão e sua implantação; além das constantes altas nos custos dos insumos diretos e indiretos somados a uma tabela de repasses do SUS desatualizada há mais de uma década”.
Um dos esforços em curso para reduzir a resposta negativa das famílias é a formação das equipas de acolhimento hospitalar, segundo Noemy Gomes, do CT-PE. “Investimos na capacitação dos profissionais, trabalhando para levar o conhecimento de todo o processo de transplante para dentro dos hospitais, para que tenhamos profissionais cada vez mais qualificados. Trabalhamos com treinamento em diagnóstico de morte encefálica, específico para médicos, e em cursos a distância e presenciais em parceria com a Escola de Saúde Pública do Governo do Estado”.
TRANSPLANTE RENAL, A FILA MAIS LONGA
A fila mais longa de Pernambuco é para transplantes renais. No mês de setembro, havia 1.438 pessoas esperando pelo órgão. Quem já passou por essa espera foi o professor e doutorando em Ciência da Computação Paulo Filipe Cândido, 34 anos. Os cuidados com a saúde se intensificaram quando ele sentiu um problema intestinal, há 12 anos, quando notou alterações nos índices renais. A suspeita de um problema temporário não foi confirmada e novos exames mostraram que ele era um paciente renal crônico, sem medicação ou tratamento, apenas dieta. A piora dos índices o levou à necessidade de fazer diálise, por três anos e seis meses, até fazer o transplante no Imip, alguns meses antes do início da pandemia, em junho de 2019.

Após o sucesso da cirurgia, ele relata que no primeiro ano foi difícil para o organismo se adaptar ao novo rim e ajustar a dosagem da medicação. “Inicialmente, acompanhamento diário, vários exames e visitas ao médico. Depois, com a melhora dos índices, as consultas passam a ser mensais, trimestrais e semestrais. Hoje tenho uma qualidade de vida muito melhor”.
Ele relata que durante a pandemia viu muitos amigos transplantados, que conheceu em hospitais, perderem a vida devido à Covid-19 ou perderem seus órgãos transplantados, afetados pelo vírus. No auge da pandemia, a ABTO chegou a dizer que as chances de morte por Covid-19 eram 10 vezes maiores quando o paciente era um transplantado.
Estudos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP mostraram que o vírus afetou esses pacientes de forma desigual, dependendo do órgão transplantado. Pessoas que receberam um novo fígado e foram posteriormente infectadas pela Covid-19 tiveram uma recuperação mais rápida e tiveram um processo inflamatório menor do que aquelas transplantadas com coração ou rim, por exemplo.
QUALIDADE DE VIDA NO HORIZONTE DOS TRANSPLANTES
Aos 69 anos, o aposentado e morador dos Prazeres, em Jaboatão dos Guararapes, Manoel Moreira Neto, realizou esta semana a consulta que marcou os cinco anos de sua cirurgia de transplante de fígado no Real Hospital Português. Após contrair hepatite C, foi encaminhado para transplante. Após ser chamado quatro vezes para verificar a compatibilidade com os órgãos, Manoel finalmente recebeu um fígado de um doador.

“Eu não esperei muito na época. Cerca de 60 dias. O transplante foi muito bem sucedido. Não senti nenhuma dor e hoje levo minha vida normal. Sou muito grato por estar vivo e com boas condições de vida. Eu dirijo, ando diariamente, faço minha lição de casa. Eu não sinto dor. Só tenho acompanhamento de três em três meses e tomo meus comprimidos. Escolhi fazer o transplante porque sabia que salvaria minha vida e se não tivesse feito a cirurgia não teria o estilo de vida que tenho hoje. O transplante foi uma renovação de vida”, diz Manoel Moreira.
Os transplantes realizados em Pernambuco atendem pacientes que estão muito além das fronteiras do estado. Um deles é José Milton de Holanda. O aposentado tem 73 anos e mora em Rio Branco, Acre. “Há alguns anos descobri que ele era portador do vírus da hepatite C. Imediatamente iniciei o tratamento, sem sucesso. Meses depois, com outros medicamentos, graças a Deus, fiquei curado do vírus. Continuei fazendo acompanhamento médico com exames laboratoriais e de imagem, mas alguns anos depois, em um dos exames de rotina, foi encontrado um trombo na veia porta (responsável por levar o sangue de todo o abdome superior até o fígado onde será ser processado). Foi diagnosticado um nódulo maligno. Devido à sua localização, não seria possível retirá-lo e a única opção seria um transplante de fígado”, diz o idoso.

Em setembro do ano passado, ele foi cadastrado no Sistema Nacional de Transplantes para realizar o procedimento em Recife, onde mora um dos filhos do paciente, que é médico. “Em junho deste ano, meu transplante foi realizado no Real Hospital Português. Fiquei em observação no hospital por seis dias até receber alta. Com 10 dias iniciei minhas atividades rotineiras, como exercícios físicos, de forma moderada. Aos 45 dias pós-transplante, recebi autorização para retornar à minha residência em Rio Branco. Hoje, três meses após o transplante, me sinto muito bem e já estou realizando uma rotina normal. Continuo sendo acompanhado pela equipe médica realizando consultas e exames periódicos”.
DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO
Enquanto os profissionais de saúde lutam para conscientizar as famílias e a oferta de órgãos, há uma vasta comunidade de pesquisadores estudando e propondo mais possibilidades de cirurgia. Alguns estudos já têm aplicações na prática médica e outros ainda estão em fase inicial.
Nos transplantes de medula óssea, por exemplo, que antes exigiam 100% de compatibilidade com o doador, estudos mais recentes permitem que a cirurgia seja realizada com até 50% de compatibilidade entre o doador e o receptor entre os familiares. A descoberta tem um impacto relevante na redução das filas desta modalidade.
“As novas técnicas imunossupressoras nos permitem realizar o transplante com um doador até 50% compatível. Os riscos são maiores, mas torna a cirurgia factível. Esse é um tipo de transplante que tem se tornado mais comum porque, com a diminuição das famílias, fica mais difícil encontrar um doador 100% compatível. Especialmente para pacientes que não podem esperar que um doador compatível apareça nos bancos de doadores voluntários de medula óssea”, diz Rodolfo Calixto, chefe do Programa de Transplante de Medula Óssea do Real Hospital Português.
Cesar Lyra explica que especificamente no transplante de fígado, estão sendo desenvolvidos equipamentos para estender o tempo entre a retirada do órgão do doador e a cirurgia. “O órgão é colocado em uma máquina de perfusão que nos permite ter mais tempo entre a retirada do órgão e o implante no paciente que o receberá. Melhora a qualidade de vida desse órgão”, explica.
O desenvolvimento de novas técnicas e tecnologias para transplantes continua incessantemente a vencer uma corrida do tempo em que o principal recurso é a solidariedade dos doadores.
Leave a Reply