Soro da ilusão: como a soroterapia, um tratamento sem comprovação científica, virou febre

Em uma poltrona descolada do consultório de alta tecnologia, o paciente recebe um líquido colorido direto na veia. A promessa é de um dia de ‘autocuidado’, saúde, longevidade e prevenção. Os nomes são diversos: soro para imunidade, para estresse, para beleza e até para depressão ou transtorno de déficit de atenção. Muitas vezes, eles vêm ao lado de expressões em inglês – pool de vitaminas, mistura de aminoácidos e assim por diante.

Com a ajuda do Instagram, influenciadores e celebridades, a chamada soroterapia virou febre. Entre os fãs, a popstar Anitta é uma das que já apareceu nos stories do Instagram recebendo a infusão em uma clínica em Miami, enquanto uma cabeleireira cuidava de suas mechas. O problema é que a tendência é crescer entre aqueles que não precisam desses nutrientes – e possivelmente nem vão aproveitá-los.

Além dos riscos iminentes à saúde dos pacientes, as principais entidades médicas da área já se posicionaram contra seu uso e há vozes que já consideram certas práticas como charlatanismo de fato. Embora estejam crescendo exponencialmente, esse tipo de tratamento é proibido aos médicos, segundo o Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb), justamente pela falta de embasamento científico.

Por meio da assessoria, o Cremeb fez um alerta à população para que denunciem à entidade os médicos que estão “fazendo e propagando” esse tipo de prática. Existem actualmente pelo menos três casos de médicos a responder a inquéritos por “esta prática irregular, sem qualquer base científica e antiética por prometer resultados curativos ou de qualquer tipo”, segundo o conselho.

Mas a proibição não impede que muitos pacientes desavisados ​​recorram a tratamentos. Ao chegar ao consultório de um médico que dizia ser especialista em longevidade, a empresária Mônica*, 54, soube que estava com “baixa ferritina”. A recomendação era que ela tomasse, por via venosa, ferro e um soro vitamínico. Além do soro vitamínico, a orientação foi que ela recebesse uma injeção de vitamina.

As substâncias corrigiriam a ferritina e a ajudariam a ter um melhor desempenho também nos exercícios físicos. Ao final da consulta, ela recebeu um orçamento e foi encaminhada para a sala da poltrona. “Também tomei seis soros de gordura visceral semanalmente. Não sei o que contém, mas ela disse que a ajudou a perder peso”, diz ela. Na época, ela estava fazendo aplicações de Ozempic, uma das famosas canetas emagrecedoras com semaglutida, então ela não acredita que os quilos que perdeu foram do soro.

Depois de seis meses, ela voltou ao médico e foi prescrito fluidos intravenosos novamente. Ela não tomou todos, mas acabou reaplicando a ‘piscina’ de vitaminas e um detox. A gordura visceral estava novamente entre as indicações, mas ela não quis porque não viu efeito. Em dois anos de acompanhamento, estimou ter gasto mais de R$ 20.000 em todos os tratamentos.

“Comecei a acompanhar outros médicos, inclusive nutricionistas que começaram a dizer que bastava colocar essas doses de vitamina em fórmulas que são passadas ou mesmo em vitaminas compradas na farmácia. Alguns médicos de outras especialidades também começaram a falar sobre isso e eu vi que estava jogando meu dinheiro pelo ralo.” lembrar.

promessas
Outras entidades emitiram alertas semelhantes, como a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). “Seroterapia é um termo muito genérico, um termo guarda-chuva sob o qual todos os tipos de procedimentos terapêuticos podem ser enquadrados – alguns adequados, outros inadequados”, explica o endocrinologista Roberto Zagury, membro do Comitê de Comunicação Social da SBEM.

Segundo ele, a entidade se posicionou justamente contra as práticas consideradas inadequadas que vêm se proliferando.

“Eles vendem uma ideia de melhora da imunidade, do estado nutricional, da medicina personalizada, individualizada. Sabemos que são termos de cunho comercial, que desconhecem uma pessoa que não é da área da saúde. O objetivo é meramente comercial, ganhar dinheiro”, reforça.

Em julho, a Associação Brasileira de Nutrologia (Abran) também emitiu um comunicado contra os procedimentos para fins estéticos – chamados pela entidade de ‘seroterapias de beleza’. Segundo Abran, eles não fazem parte da lista de procedimentos do nutrólogo.

“Drogas endovenosos injetáveis ​​e nutrientes podem ser muito úteis em casos específicos de prescrição para reposição em pacientes com deficiências, mas não para fins estéticos. A reposição intravenosa de vitaminas e minerais só deve ser realizada quando o paciente não responde à reposição. procedimento amplamente aplicado em pacientes crônicos com má absorção intestinal”, afirmam, em nota.

(Foto: Shutterstock)

Segundo a nutricionista Sandra Fernandes, professora do Curso Nacional de Nutrologia da Abran e coordenadora da equipe multidisciplinar de nutrição do Hospital Meridional, é possível indicar a reposição venosa quando o paciente não consegue absorver vitaminas pelo trato gastrointestinal. Alguns exemplos são casos de pessoas que retiraram parte do intestino para cirurgias de pâncreas, pacientes bariátricos ou pacientes com doença de Crohn, no caso de reposição de ferro.

“Para uma pessoa saudável, como se vende por aí, como soroterapia de estresse e imunidade, não há respaldo científico. O que tem efeito para isso é uma boa alimentação. Suplementar proteínas e vitaminas em pessoas saudáveis ​​que não tem indicação é um mercado. Há vários blogueiros fazendo propaganda disso”, alerta.

Portanto, é necessário diferenciar os dois cenários. As pessoas que passam mais de 15 dias em hospitais correm o risco de desenvolver a chamada desnutrição hospitalar. Esse público também pode precisar de suplementação alimentar, como explica o nutricionista e médico de família Washington Abreu, professor de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Bahiana e FTC Medicina.

“Nutrologistas em hospitais já estão cientes disso. Equipes de terapia multidisciplinar já estão cientes disso. Esse soro vitamínico, por exemplo, usado dentro de hospitais, foi aprendido por médicos que não são nutrólogos ou que são, mas viram nisso uma possibilidade de ganho hospitalar”, exemplifica.

Assim, segundo ele, esses soros saem dos hospitais e passam a fazer parte da rotina de ambientes não hospitalizados. Daí vem a primeira pergunta do especialista: haveria necessidade de reposição de nutrientes para quem não está desnutrido? “Não são, digamos, procedimentos condenáveis. Apenas não são indicados para aqueles pacientes que não precisam utilizá-los”, acrescenta.

Mesmo aqueles pacientes que apresentam condições que exigem alguma reposição de nutrientes só podem fazê-lo em ambiente hospitalar, que são locais que possuem carrinhos de emergência. Isso porque é preciso considerar a necessidade de uma emergência em casos de reação aguda, como alergia, ou mesmo desconforto cardiovascular, neurológico e gástrico.

“Como o nome indica, a soroterapia exige uma infraestrutura para isso e a indicação em nutrologia e nutrição é que a última possibilidade de nutrientes seja a via venosa. não tem condições, ela pode ter uma sonda pelo próprio trato gastrointestinal”, diz Abreu.

Um dos casos atendidos pelo endocrinologista Roberto Zagury apresentou reação anafilática grave na pele, de forma generalizada. “Não sou dermatologista, mas como ele recebeu (o soro) supostamente de um endocrinologista, ele achou que um endocrinologista poderia mudar. Meu papel era colocar no caminho certo e encaminhar para um dermatologista, que teve que internar o paciente”, lembra.

Urina
Além dos riscos, a maioria desses nutrientes será perdida por quem não precisa. Em excesso, as vitaminas hidrossolúveis, por exemplo, como as do complexo C e B, sairão na urina. “As vitaminas A, D e K são lipossolúveis. Serão depositadas principalmente no fígado”, explica Sandra Fernandes, da Abran.

Se alguém se sente bem depois de uma piscina de vitaminas, pode ser que alguns nutrientes tenham ajudado a resolver um déficit não diagnosticado. “Mas é atirar no que você viu e acertar o que você não viu. O resto, eliminamos ou acumulamos. Ou joga tudo fora ou pode virar cálculos urinários, impregnar os tecidos”, cita o nutricionista Washington Abreu.

Os custos também são um ponto de debate. Alguns pacotes com soros para emagrecer, por exemplo, podem custar R$ 10 mil. A reportagem teve acesso ao catálogo de uma farmácia que vende injetáveis ​​e a maioria das substâncias custa entre R$ 30 e R$ 80 cada.

“Para o hospital é um preço de compra. O ferro venoso, que é o medicamento mais usado nas veias, é muito barato”diz o médico. “Precisamos de estudos científicos (de estética). Não podemos confiar no que eles estão fazendo. Temos que saber se realmente há benefícios para os pacientes”acrescenta Sandra.

Os valores não seriam necessariamente um problema, para o endocrinologista Roberto Zagury, se fossem justificados – ou seja, se fosse um procedimento tecnicamente adequado e realizado por um médico muito qualificado cobrando um preço justo. Simplesmente não é o que normalmente acontece.

Entre as celebridades que anunciam, é comum que muitas não paguem pelo tratamento. “Um médico decente nem mesmo usaria um paciente dele para propaganda. Não posso pegar um paciente assim e anunciar que é algo completamente natural, que não há risco, que a pessoa vai embora em cinco minutos. Esse discurso é muito típico do charlatanismo”, critica.

*nome fictício

É possível obter todos os nutrientes com a alimentação, diz nutricionista

Seja em Medicina ou Nutrição, não há nada milagroso. O alerta é da nutricionista Cristina Menezes, especialista em nutrição clínica e diretora do Conselho Regional de Nutrição (CRN5). Segundo ela, não há necessidade de suplementação quando a pessoa tem uma alimentação saudável, com bons hábitos e opta por alimentos que não sejam ultraprocessados.

“O que deixa com falta de energia é a falta de alimentação adequada. Precisamos de alimentos que sejam fontes de nutrientes, como frutas, verduras e ovos. É possível obter todos os nutrientes com alimentação e mudanças no estilo de vida”, Oriental

A quantidade de vitaminas e minerais necessários para alguém depende de fatores como a idade do paciente. Além disso, você precisa manter seu intestino saudável. Sem ela, você não consegue absorver nutrientes – e, consequentemente, ter energia.

“Para saber se o intestino está saudável, basta observar o ritmo intestinal, se as fezes estão em forma de salsicha. Se as fezes estão em forma de bolinhas, a pessoa pode estar desidratada ou não estar absorvendo nutrientes”, completa o nutricionista.

irregularidades
Uma recomendação antes de escolher um profissional médico é verificar se a pessoa possui cadastro ativo no Cremeb – isso pode ser feito no site, através do link. No local, também deve ser informado se a pessoa possui especialidade na área em que afirma atuar, como endocrinologia e nutrologia.

Se algum paciente tiver algum problema após um procedimento como soroterapia, ele pode registrar uma reclamação na diretoria. Segundo a entidade, a denúncia não pode ser anônima e deve ser assinada pelo denunciante ou por um representante legal. Para mais informações, acesse o link.

Entre 2020 e 2022, o Cremeb abriu três investigações sobre soroterapia, segundo assessoria da entidade. Destes, um aguarda a emissão de parecer e dois resultaram na instauração de um Processo Ético Profissional (PEP). Um dos PEPs levou à interdição e, após o julgamento, o médico teve seu exercício profissional suspenso por 15 dias. O outro processo está na fase de instrução.

O Cremeb reforçou que não há base científica para o tratamento, e os médicos estão proibidos de divulgá-lo. A autarquia disse que “convida a população a denunciar à autarquia o médico que está a realizar e a propagar este tipo de prática irregular”.

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