A pandemia de Covid-19 esfriou, mas não acabou e, mais importante, outras podem surgir em um futuro próximo. Esses são alguns dos mantras que o recém-eleito diretor-geral da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, que também é o escritório regional para as Américas da Organização Mundial da Saúde, OMS), o brasileiro Jarbas Barbosa, repete até cansar. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, o renomado sanitarista defende o fortalecimento dos sistemas públicos de saúde, novas regras globais para distribuição de vacinas e o fortalecimento da forte tríade de vigilância, incluindo genômica, campanhas de vacinação eficientes – principalmente no combate às falsificações. notícias — e acesso a antivirais. ‘Não sabemos prever quando e com que gravidade ocorrerá uma nova emergência de saúde pública, mas sabemos que irá ocorrer’, sublinhou Barbosa.
A pandemia evidenciou as dificuldades de articulação entre os países da região?
Temos situações diferentes, mas nosso problema é que hoje não temos mecanismos de integração na América do Sul. Já tivemos projetos como o Prosul (Fórum para o Progresso da América do Sul, que durou pouco), o Mercosul só leva o Cone Sul. Mas tivemos importantes manifestações de solidariedade. Os Estados Unidos fizeram muitas doações, inclusive para países com os quais os EUA não têm relações diplomáticas, Canadá também, Espanha. O Brasil doou vacinas, o México também. Mas se compararmos com a África, a União Africana é um mecanismo de chefes de estado e não temos isso na região das Américas, mas acredito que é possível buscar superar as divisões com o que temos hoje. A pandemia deixou essa lição. A OPAS fez uma avaliação externa e recomendamos que os países façam isso, vejam o que funcionou e o que não funcionou. Teremos um relatório no início do próximo ano e me comprometi a seguir todas as recomendações. Não podemos passar pelo maior desastre de saúde pública em um século sem implementar as lições que aprendemos. Precisamos estar melhor preparados se uma nova pandemia ocorrer em um futuro próximo.
Quais são as principais lições deixadas pela pandemia de Covid-19?
A primeira grande lição é que devemos pensar na forma como cada país responde a uma emergência de saúde pública. Ninguém estava preparado para uma pandemia das características da Covid-19. O vírus sars-cov 2 se espalha muito rapidamente e tem capacidade de produzir casos graves, que levam os sistemas de saúde ao colapso. Temos que rever o que consideramos preparação para emergências, fortalecer a capacidade local, nossos laboratórios, detecção e resposta, aumentar os recursos rapidamente. Os países da região devem assumir uma posição coordenada no debate global para ter mecanismos de acesso equitativo realmente eficazes. Na ausência de regras claras sobre o compartilhamento de vacinas, os países ricos compraram todas as vacinas a princípio. Também temos que discutir o fato de que a pandemia afetou negativamente todas as prioridades de saúde. Ela reduziu a imunização de rotina; vacinação para poliomielite, sarampo, que vinha diminuindo desde 2016; reduziu o diagnóstico e controle de doenças crônicas como HIV, tuberculose, câncer; aumentou a mortalidade materna em 19%. Também temos que pensar em como ter sistemas de saúde mais resilientes. Temos a oportunidade de transformar isso em uma agenda concreta em cada país, melhorar o financiamento público, ter recursos humanos em quantidade e com formação adequada.
Os brasileiros começaram a dar mais valor ao SUS…
Em todos os países, a população passou a dar maior importância aos sistemas de saúde, e devemos aproveitar o momento para fortalecê-los.
Não é hora de cortar recursos de saúde…
Devemos buscar atingir um patamar mínimo para que um sistema de saúde garanta o acesso universal, que é um gasto público de 6% do PIB em Saúde. O Brasil está um pouco abaixo de 4%. Você não pode aumentar da noite para o dia, mas precisamos ter um aumento progressivo.
Você insiste em dizer que a pandemia não acabou.
Enquanto o vírus está circulando, uma nova variante pode surgir, é imprevisível. A tríade de vigilância forte, incluindo genômica, campanhas de vacinação eficientes – principalmente no combate às fake news – e acesso a antivirais é essencial.
A OPAS combateu vigorosamente a negação de vacinas?
Enquanto o vírus está circulando, uma nova variante pode surgir, é imprevisível. A tríade de vigilância forte, incluindo genômica, campanhas de vacinação eficientes – principalmente no combate às fake news – e acesso a antivirais é essencial. Foi o que aconteceu contra as vacinas da Covid, em outras vacinas. Mas não tenho dúvidas de que a forma como nos comunicamos deve mudar. Uma parcela da população quer ter mais informações. As vacinas são um grupo pequeno, mas estima-se que 15% das pessoas querem mais informações antes de tomar uma decisão. Antes as campanhas de vacinação eram mais fáceis, era basicamente lembrar o dia em que as pessoas deveriam ir ao posto para se vacinar. Temos que mudar a forma como nos comunicamos em cada país, e deve haver um grande envolvimento dos profissionais de saúde.
Combater notícias falsas é um grande desafio?
A melhor vacina contra as fake news é ter uma comunicação transparente, com fontes confiáveis. Fizemos acordos com Facebook e Twitter, que foram importantes. Por ser diário, precisamos ter estratégias para combater a desinformação, que de outra forma vira uma bola de neve.
Que outros desafios você terá à frente da OPAS?
As grandes cidades se expandiram, temos bairros pobres e não tão pobres em contato com áreas que eram selvagens; mobilidade gigantesca no mundo, milhares de pessoas que mudam de país e continente todos os dias; e a própria maneira de criar e vender animais mudou. Há muitas possibilidades de que vírus que antes circulavam apenas entre animais ultrapassem a barreira biológica e passem a infectar pessoas. Esses são os vírus com potencial para se tornar uma emergência internacional de saúde pública. Precisamos fortalecer a vigilância com base no conceito de saúde única. Monitore a saúde animal e humana com novas tecnologias.
Não podemos prever quando e com que gravidade ocorrerá uma nova emergência de saúde pública, mas sabemos que isso acontecerá. Não podemos baixar a guarda, com base nas lições aprendidas neste e nosso dever para com todos os que morreram nesta pandemia é estar muito melhor preparados para a próxima.
Temos uma epidemia de transtornos de saúde mental na região como resultado da pandemia?
Houve aumento nos diagnósticos de ansiedade e depressão, maior consumo de algumas drogas. A saúde mental precisa estar melhor posicionada dentro dos sistemas de saúde. A OPAS criou uma comissão de alto nível sobre isso, temos muito o que fazer.
Quão importante é que o Brasil tenha vencido as eleições na OPAS?
É importante para o Brasil, porque já tivemos outros brasileiros, não sou o primeiro, e isso poderia ter sido contra mim, afinal, algumas regiões nunca tiveram diretor. Os países me conhecem, quando estive no Ministério da Saúde e na Anvisa representei o Brasil na OMS e na OPAS. Fui porta-voz da organização durante a pandemia. É um reconhecimento do Brasil em sua trajetória na saúde pública.
Eleito apesar de Bolsonaro
Dos cinco candidatos que disputam o cargo de diretor-geral da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, que também é o escritório regional para as Américas da Organização Mundial da Saúde, OMS), apenas um não teve apoio explícito — nem implícito. do presidente de seu país, o brasileiro Jarbas Barbosa, eleito no final de setembro. Com trajetória reconhecida, o ex-presidente da Anvisa e que já ocupou cargos importantes no Ministério da Saúde, derrotou os candidatos do Panamá, México, Uruguai e Haiti, cujos chefes de Estado estiveram diretamente envolvidos na campanha para ocupar um cargo de enorme importância no sistema interamericano. Os presidentes de outros países não só fizeram campanha por seus candidatos, em alguns casos, como o do México, eles até ofereceram, segundo fontes ouvidas pelo GLOBO, acordos comerciais em troca de apoio. O esforço foi tão grande que a escolha de Barbosa, apesar do presidente Jair Bolsonaro, causou desconforto nos governos vizinhos. O novo diretor-geral da OPAS foi questionado por setores do bolsonarismo por ter atuado em governos de outros partidos, se opondo a drogas como a cloroquina nos piores momentos da pandemia e, essencialmente, não estar em consonância com as visões e políticas do atual governo . O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, apoiou a candidatura e pediu apoio aos colegas de outros países. O Itamaraty ofereceu apoio discreto à candidatura de Barbosa. Mas houve pedidos dentro do governo e entre aliados para que o nome do agora eleito diretor-geral da organização fosse retirado pelo governo brasileiro, confirmaram fontes. Foi uma oportunidade única de defender o prestígio da política de saúde brasileira e foi arriscada pelo governo Bolsonaro. Barbosa vencido, será o sucessor da dominicana Carissa F. Etienne, e ocupará o cargo por cinco anos, a partir de fevereiro de 2023.
Fonte: O Globo
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