Em 2020, o surgimento do vírus SARS-CoV-2, responsável por desencadear a pandemia de covid-19, foi apenas o início dos distúrbios que levaram à crise sanitária mundial. Com menos de um ano, logo surgiram outras variantes, entre elas, o ômicron.
Protagonista da 3ª onda de casos que atingiu mais de 100 países ao redor do mundo, essa variação é alvo de novas pesquisas do Instituto de Medicina Tropical (IMT/UFRN). Ao analisar dados de pacientes acometidos pelo vírus nos municípios de Natal e Apodi, no Rio Grande do Norte, o estudo expõe a capacidade da cepa de reinfecção em indivíduos imunocompetentes e totalmente vacinados.
Pesquisas sugerem que a variante de preocupação (VoC) tem maior capacidade de escapar da proteção imunológica fornecida por diferentes tipos de vacinas ou da infecção natural de qualquer variante anterior da SARS. -CoV-2.
O trabalho foi realizado com dados coletados pelo Sistema de Vigilância Genômica Covid-19 e teve como principal catalisador o alto número de infectados e a demanda por testes no Instituto de Apodi. Ao todo, o IMT soma mais de 185 mil exames para detectar a doença no Rio Grande do Norte.
De acordo com o monitoramento epidemiológico do Instituto, entre abril de 2020 e fevereiro de 2022, do total de 172.965 pessoas triadas no Instituto, 58.097 testaram positivo para SARS-CoV-2. Deste grupo, 444 tiveram uma segunda infecção, dos quais 277 ocorreram durante o surto do ômicron e nove foram selecionados pelo estudo para sequenciamento.
Após análise genômica, foi possível identificar a diferença entre as cepas de vírus da primeira e da segunda infecção, sendo esta última desencadeada pelo ômícron entre os indivíduos imunizados.
As análises do Sistema de Vigilância Genômica são realizadas de forma sistemática, contando com o apoio das equipes de bioinformática do IMT e da rede de vigilância genômica do Instituto Butantã. Quanto ao tempo necessário para as investigações, dois fatores principais são considerados: o número de amostras e o tipo de sondagem de cada estudo.
No trabalho do ômicron, observa Francisco Paulo Freire Neto, primeiro autor do estudo, a correlação entre os dados dos pacientes e as informações coletadas no banco de dados do Sistema de Vigilância ficou evidente desde o início. Isso porque, diferentemente de pesquisas anteriores, a filtragem de dados não foi uma barreira.
Entre o grupo de nove amostras analisadas, a pesquisa identificou que uma pessoa do sexo feminino teve um episódio de reinfecção 70 dias após a infecção primária e oito dias após a dose de reforço da vacina contra a covid-19.
Nas duas infecções, as cepas do vírus divergiram, sendo a primária desencadeada pela variante delta AY.99.2 e a reinfecção pela ômícron. Também foi notável a alta frequência de cepas de AY (Delta VoC), representando mais de 30% de todas as sequências no estado do Rio Grande do Norte. Variantes derivadas de delta foram encontradas em quase 100% dos isolados sequenciados no Brasil em dezembro de 2021.
As altas taxas de testes positivos e as consequências geradas por uma variante de preocupação, no entanto, não implicam consistência no número de casos, levando o estudo a observar a variação dessa recorrência no período analisado.
De dezembro de 2020 a julho de 2021, a média chegou a 160,9 casos por dia, enquanto no início de janeiro de 2022, o número havia caído para 27,8 casos por dia. Em termos de taxas de reinfecção, observou-se, no início de 2020, durante o período de dominância do ômícron, que o índice atingiu um pico de 277 casos, considerando todos os registros identificados no Sistema de Vigilância. O primeiro dia de reinfecção foi de 62 dias após a primeira infecção e o mais longo, por outro lado, foi de 638 dias.
Esse surgimento paralelo de novas variantes e o aumento de pacientes com covid-19 acontece porque a potencial transmissibilidade, virulência (capacidade de se multiplicar dentro de um organismo) e resistência a anticorpos neutralizantes do ômicron, além de outras variantes preocupantes, estão ligadas a as maiores taxas de carga viral e taxas de reinfecção entre os indivíduos.
Consequentemente, os VoCs podem superar os efeitos protetores da defesa do corpo por anticorpos, seja por infecção ou por vacinação. No início do período analisado, por exemplo, o Brasil já tinha 79% da população com pelo menos uma dose da vacina. Hoje, esse percentual saltou para mais de 93%, segundo o Ministério da Saúde.
CRITÉRIOS PARA AVALIAR E DEFINIR UM VOC
Antes de serem consideradas variantes de preocupação, explica Francisco Paulo Freire Neto, as novas cepas são consideradas variantes de interesse (VoI). Nesse caso, verificam-se alguns critérios estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), dentre os quais se destacam: representatividade no aumento de casos de covid-19, registros em diversos países e presença de marcadores genéticos específicos capazes de interferir com transmissão, no diagnóstico, na terapia ou na fuga imunológica.
“Depois podem se tornar Variantes de Preocupação (VoC) seguindo outros critérios como: aumento da transmissibilidade da covid-19; gravidade aumentada ou alteração na apresentação clínica da doença; diminuição da eficácia das medidas sociais e de saúde pública ou diagnósticos, vacinas e terapias disponíveis. Todos esses critérios foram definidos pela OMS em conjunto com outras instituições como o CDC americano”, completa o pesquisador. Entre as variantes que foram identificadas como fator de risco, podemos citar alfa, beta e gama.
No caso do omicron, que, como aponta o estudo, tem maior capacidade de reinfecção em relação a outras cepas, essa capacidade se deve ao seu grande número de mutações na região do spike, proteína responsável pela entrada do vírus na célula e usado na maioria das vacinas.
Segundo o autor, foi exatamente esse número de mutações que não só o diferenciou de outras variantes, como também favoreceu o escape do vírus covid-19 do sistema imunológico humano e, em alguns casos, do processo de transmissibilidade.
LIMITAÇÕES E EXPECTATIVAS
Com avanços no monitoramento do cenário de pandemia e novas cepas de covid-19, o estudo também apresentou limitações. Isso porque a comprovação de um caso de reinfecção, segundo os critérios do Ministério da Saúde, exige duas confirmações positivas pelo teste RT-qPCR, 90 dias de intervalo entre as infecções, manifestações de sintomas característicos da covid-19 e cultura viral positiva. .
Neste último caso, com sequenciamento adicional de RNA viral de ambos os episódios mostrando diferentes cepas. No estudo não houve cultura viral, mas com a amostra do paciente que teve episódios de infecção com intervalo de 70 dias, foi possível evidenciar a presença de linhagens diferentes na sequência dos dois casos isolados.
O estudo mostra ainda que, dentro de um grupo de três pessoas com reforço contra a covid-19, todas desenvolveram sintomas característicos de contaminação ômícron, como faringite e dor de cabeça.
Isso comprova o fato de que nem as vacinas atuais disponíveis, como Coronavac e Pfizer, nem o histórico anterior de covid-19 são suficientes para estabelecer uma resposta à variante que proporciona um risco reduzido de infecção. Mas a vacinação de reforço, apontam os pesquisadores, aumenta os títulos de neutralização para a variante.
Outro desafio visto é a dificuldade de compreensão dos inúmeros caminhos percorridos pela linhagem ômícron ou outras variantes capazes de causar reinfecções, exigindo o desenvolvimento de mais pesquisas para entender o papel dessas mutações que levam ao escape da resposta imune gerada pela infecção ou vacinação anterior. Em outras palavras, os fatores responsáveis por influenciar a imunidade protetora contra a Covid-19 ainda não estão totalmente determinados.
Isso não significa, porém, que a cobertura vacinal seja ineficaz no combate à pandemia e na redução de casos da doença. Ao contrário, as vacinas atualmente disponíveis reduziram sua gravidade, embora tenham ocorrido internações e óbitos com a introdução do omicron, cepa menos perigosa quando comparada à gama.
Os investigadores, nesse sentido, defendem que é necessário desenvolver vacinas com potencial para reduzir os níveis de transmissão, processo em que a vigilância genómica é peça fundamental para avaliar novas variantes e planear outras estratégias de combate à covid-19.
Do ponto de vista do pesquisador, mesmo com suas limitações, o estudo vinculado ao ômicron representa um resultado importante para a produção científica local.
“Pesquisas desse tipo nos colocam em pé de igualdade com outros grupos de pesquisa no Brasil, e com isso podemos obter mais conhecimento e aprimorar técnicas que podem ser utilizadas em outras doenças infecciosas. Atualmente, continuamos monitorando as variantes mensalmente”, enfatiza.
CENÁRIO ATUAL DO COVID-19
RN vacinou mais de 2,7 milhões de cidadãos – Foto: Cícero Oliveira – Agecom/UFRN
O estudo analisou dados de dezembro de 2020 a julho de 2021 e, nesse sentido, não reflete o contexto atual da covid-19 no Brasil.
O país mostra estabilidade na média móvel de casos conhecidos e indica tendência de queda na média móvel de óbitos. No total acumulado, 8.472 pessoas foram vítimas fatais do vírus no estado, enquanto em nível nacional esse número sobe para 687.
Com as projeções de queda, Francisco Paulo Freire Neto diz que as chances de surgimento de novas variantes também diminuem. Isso porque o aparecimento dessas mutações está diretamente relacionado ao aumento da circulação do SARS-CoV-2, que os coloca diante do sistema imunológico da pessoa infectada.
É precisamente neste momento, explica, que se dá a “batalha” entre a defesa imunitária e o vírus e, com a elevada disseminação deste último, torna-se maior a probabilidade de que um vírus diferente vença.
No Rio Grande do Norte, segundo dados do RN+Vacina, o estado superou a meta de cobertura vacinal de 2.534.421 pessoas imunizadas e vacinou 2.756.652 cidadãos. Segundo o levantamento, 94% da população já está imunizada com a primeira dose ou dose única contra a covid-19.
Em relação aos imunizados com a primeira dose de reforço (D3), o percentual cai para 54% e corresponde a 1.728.642 vacinados. Por fim, com a menor taxa de cobertura vacinal, o grupo que recebeu a segunda dose de reforço (D4) totalizou 644.982 pessoas, representando 20% dos imunizados.
Além de Francisco PF Neto, pesquisador do Instituto de Medicina Tropical (IMT) e do laboratório Getúlio Sales Diagnósticos, o trabalho foi realizado por outros nove pesquisadores. São eles: Diego G. Teixeira, Dayse CS da Cunha, Ingryd C. Morais, Celisa PM Tavares e Selma MB Jerônimo, todos associados ao Instituto de Medicina Tropical. Além deles, o trabalho conta com a colaboração de Genilson P. Gurgel, da Secretaria Municipal de Saúde de Apodi (RN); Sanderson D. do Nascimento e Alexandre de O. Sales, da Getúlio Sales Diagnósticos; e David C. dos Santos, do Instituto Metropole Digital (IMD/UFRN).
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